Quebrando a tradição para mantê-la
Me senti um pouco Mara Salles e John Nossiter na hora de fazer o gefiltefish do Pessach, a Páscoa dos judeus, que se comemora amanhã.
Me senti, como eles, saudoso de uma época em que minha mãe passava três dias na cozinha para preparar o encontro familiar, que nos permitia ir dormir absolutamente empanturrados com a quantidade de cebola a temperar um a um todos os pratos que compunha aquela pantagruélica refeição composta de cinco ou seis entradas, caldo de galinha feita com o animal abatido e limpo no dia anterior, cozido por horas e horas, temperado com sal, cebola, dill e salsão, servido com os pedaços de peito e sobre-coxa num prato, cenoura e outros legumes num outro, fígado, coração, moela, pés, garganta e carcaça num outro. O caldo vinha filtrado em pano e às vezes completo com umas bolinhas de farinha e ovo previamente assadas e cortadas em pequenos pedacinhos. A festa continuava com ao menos um grande prato de carne e terminava invariavelmente com compota de frutas secas.
Mas o principal do meu sentimento esteve ligado àquele gefiltefish que não voltará, ao menos que algum aficionado o faça voltar, um prato camponês, rústico e ritualístico, diferente do que se apresenta por ai, apesar de conter os mesmos ingredientes no preparo, a saber - peixe de rio moído, ovo, farinha de trigo, cozido num caldo de peixe. O da minha mãe passa por uma selagem na frigideira e por um cozimento num caldo enriquecido por uma base de cebolas extra-douradas, um verdadeiro teste para os estômagos mais sensíveis.
Pois bem, selo, apesar de usar muito menos óleo do que ela costumava usar. Pois bem, douro as cebolas, apesar de usar 2 cebolas grandes para o kg de carne, enquanto que ela usava praticamente um kg de cebola para cada de carne.
Pois bem, entendo que o tempero dela, baseado num caldo feito das tiras do peixe, dill e salsão, sal e pimenta no bolinho e esta dose enorme de cebolas, apesar de gostoso, delicioso, referência, me enche um pouco.
Desta vez meti um caldo baseado nos expurgados vôngoles e casca de camarão e tomilho. Temperei os bolinhos em sal, pimenta branca, coloral de urucum, gotas de limão.
E principalmente, ei de servir cada pedaço fatiado com uma camada de bolinhas de ova de tainha, preparada como conserva de caviar de estrujão por cima.
Ao lado o cren, que ninguém é de ferro.
Na verdade, o gefiltefish é um prato que bem lembra a sopa dos pobres e a multiplicação dos peixes, porque permite que todos comam um pouquinho daquela iguaria tão rara na despensa das famílias rurais do século XIX. Hoje em dia, a molecada se lambuza com a oferta de peixe fatiado nas casas de sushi. conhece vários preparos, um diferente do outro.
Manter o ritual, deixar as pessoas com água na boca é legal, mas é preciso renovar um pouco... Ou não.
3 Comments:
Como participante da mesa da Tia Fran, mãe do Breno, devo dizer, que a herança gastronômica deste é do mais alto gabarito. A Tia Fran, fazia um guefilte fish originalíssimo, segundo ela, herdado da vovó Dora, sua mãe e numa perfeição e rigor inimagináveis. As paredes do apartamento andavam para fora para receber com a maior generosidade quem estivesse solto por ai nesta data, além da família. Este sabor composto de peixe, tradição e amor, difícil reproduzir, é a marca sensorial que cada um de nós podemos deixar no outro. Vale a tentativa da renovação? Não sei. Viva a Fran, na nossa presente memória. Chag Sameach!
Anete, a verdade é que tenho vontade de copiar mas tenho o impulso de considerar que as condições daquela criação mudaram de tal modo que posso perfeitamente adaptá-lo sem perder o essencial.
Acho que não tenho exagerado na inovação, me parece.
Olha Brenão nunca tinha ouvido de gefiltefish, mas parece ser muito bom. Quanto ao fazer ou não igual um prato, tenho esse mesmo sentimento, pratos que meu pai fazia, por mais simples que eram, nunca ficam iguais.
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