Mais um artigo requentado
Remexendo nas minhas coisas, descubro sempre artigos que ficaram para trás no tempo, coisas que não escreveria de novo, seja porque o texto não satisfaz o meu conhecimento atual, seja porque os fatos negaram a avaliação de antão. Escrevi sobre restaurantes coisas boas que se mostraram ilusórias, enchi a bola de uns tantos que não merecem mais a mesma consideração que tive. Não é o caso do texto que reproduzo abaixo.
Bacalhau com biquinho.
Num fim da Rua Joinvile, quando ela quase se encontra com a 23 de Maio, o Hotel Mercure ameaça se jogar sobre os carros que passam rosnando por baixo do viaduto da Tutóia. É deste prédio do grupo Accor que sai uma boa parte da malta que deu características pra lá de singulares ao bar da esquina da Rua Caravelas nº374, no outro canto do mesmo quarteirão da Joinville.
Já não era um bar qualquer, já que jamais servia bacalhau que não fosse de primeira, o que, convenhamos, não é comparação que se preze, pois não há tantos bares de esquina em São Paulo, que andem por aí a servir bacalhau, seja ele de primeira, de segunda ou de terceira!
Como já se disse, não era um bar qualquer, a começar pela pretensão despropositada que se deu ao chamar-se ”Academia da Gula”, numa cidade como esta, centro mundial da boa comida.
Pois, abusada, andava também a servir punhetas* a torto e a direito... Punhetas - bacalhau desfiadinho, servido frio, regado com azeite de surpreendente qualidade, decorado com azeitonas portuguesas, um campeão de vendas e elogios.
De bacalhau mais um bocadinho, mas não apenas dele. Bacalhau em bolinhos, na salada com grãos de bico, nos modos tradicionais e também no mais importante da casa, um que vai ao forno e que quanto volta à cozinha, volta sempre vazio, pois quem não agüenta comer tudo, manda invariavelmente embrulhar para levar pra casa e comer requentado no dia seguinte.
Tirante o bacalhau, o bar servia os pratos do dia, a moela à portuguesa, cozida na cerveja; a lingüiça no álcool, a alheira delicadamente grelhada.
Mas até aí, muito que bem, falamos certamente e com certeza de uma casa portuguesa. Uma casa simples, de cadeiras e mesas de plástico branco, propriedades de uma moça que saiu em 1970 dos campos de Barcelos, nas terras frias trasmontanas de Portugal, na região de Braga, para florir por aqui.
Não era uma moça qualquer, era uma Rosa, que filha de banqueteira, se espelhou na genitora e copiou de casa porque tinha o que copiar - o fazer simples, limpo e vistoso da mãe, com apenas pimentão vermelho, jamais verde ou amarelo, com pouca cebola, com praticamente nenhum alho, muito pouco sal, pimenta quase nenhuma, salsinha e olhe lá (atenção, estamos chegando perto do limite máximo de temperos permitidos naquela cozinha rigorosamente simples, melhor dizendo, que aplica o princípio da simplicidade com o máximo rigor).
Dos primeiros tempos, quando fazia comida por quilo, guardou o respeito ao prato de resistência, um picadinho a R$7,00 e o mobiliário de plástico, cadeiras e mesas brancas.
A malta do Hotel Mercure são principalmente os funcionários da AirFrance no Brasil, entre pessoal da terra e do ar, que, transformaram o bar em Chez Rosà, assim, com biquinho e tudo. Até então, o bar fazia sucesso nas redondezas, particularmente entre as produtoras de vídeo da região, inclusive a importante Espaço Loc All, que participou fortemente da campanha vitoriosa do Lulalá, de 2002.
Mas então não tinha ainda abacate na salada de folhas e tomate. Não tinha ainda manga Palmer na sobremesa, duas contribuições dos exigentes franceses. E, principalmente, não tinha ainda a carne passada no ponto parisiense, çà veut dire, azul de tão crua, apenas grelhada o suficiente para deixar o interior quente!
No entanto, vê-se logo pela Daniella, a filha mais velha da Rosa, que este Portugal foi reconquistado por estes Napoleões. Formou-se na Aliança Francesa a partir da necessidade de entender aquela gente que pedia coisas ininteligíveis para qualquer brasileiro. Tomou gosto pelo estudo e a determinada filha de camponesa, neta de banqueteira, trouxe o primeiro diploma acadêmico para dentro da Academia da Gula, sendo que, com 24 anos de idade, é formada em Comércio Exterior. Com certeza, é por sua decisão, que o bar, que já nasceu diferente, tem site – www.academiadagula.com.br - com todas as informações que se pode querer (menos o preço dos pratos). Paulo Thiago, o irmão mais moço, que igualmente freqüenta o ir e vir da cozinha para as mesas, trilha igualmente seu destino universitário, mostrando que este capitalismo de esquina pode ser altamente civilizatório, de vez em quando.
Moral da história, a Academia da Gula - Chez Rosà para os íntimos - virou uma deliciosa e acessível pororóca de culturas, onde as divergências entre portugueses, franceses e brasileiros se resolvem à mesa.
* Punheta de Bacalhau, chama-se assim mesmo, pois aos nossos ouvidos a cozinha portuguesa nos parece desbocada, com suas Sopas de Grelo, Arroz de Pica no chão, feito à base de frango e toucinho e Cacetes, o nosso antigo filão de pão.
Texto de autoria do proponente do projeto (2)
O fator inovação
1 Comments:
muito bom, de novo! Lia
Postar um comentário
<< Home